VARIAÇÕES  SOBRE  O  LIBERALISMO

MIGUEL REALE

 

                   A cavaleiro dos dois últimos séculos, sobretudo devido à influência da teoria marxista, liberalismo e socialismo se contrapuseram, surgindo os primeiros vaticínios sobre o predomínio de um ou de outro na direção política do mundo, a começar pelo Ocidente.

                   Como é sabido, o liberalismo foi considerado, de início, na Europa e nos países ligados à sua cultura, uma doutrina mais aplicável na área econômica, com base nos ensinamentos setecentistas de Adam Smith e de seus continuadores, ao passo que já ganhava também uma conotação política nos Estados Unidos da América, graças às diretrizes firmadas por Thomas Jefferson e demais fundadores da Grande República do Norte.

                   Aos poucos, porém, essa acepção lata se estendeu a todas as nações ocidentais, adquirindo, ao longo da passada centúria, o significado de doutrina política caracterizada pela distinção básica entre atividade econômica e atividade política, sendo a primeira confiada à iniciativa privada, ficando a outra a cargo do Estado, incumbido apenas da ordem interna e da defesa das soberanias nacionais, sem cuidar de medidas da natureza assistencial. A Constituição republicana de 1891 enquadra-se nessa concepção.

                   Todavia, no decorrer do século 20, principalmente após a 1ª Grande Guerra, cujo fim coincidiu com a implantação do bolchevismo na Rússia, veio se alargando a competência do Estado no campo da saúde pública e da educação, consideradas cada vez mais atribuição dos órgãos governamentais.

                   Isso não obstante, o liberalismo, por longo tempo se manteve adverso à intervenção estatal nos domínios econômicos, enquanto crescia a força dos partidos políticos socialistas, tomado este termo em sentido lato, abrangendo programas inspirados na experiência soviética.

                   Não foi apenas o impacto das reivindicações socialistas que determinou a ampliação da competência estatal em assuntos econômicos e sociais, mas também a chamada “revolução industrial” resultante da aplicação tecnológica no plano da produção das riquezas, o que teve como resultado o fortalecimento das organizações operárias, de maneira especial dos respectivos sindicatos.

                   No Brasil, essas alterações datam da revolução de 1930, cuja constituição de 1934 chegou ao ponto de criar no Congresso Nacional a “representação classista” dos empregadores e dos empregados. Tudo isso, porém, veio abaixo com a instauração do Estado Novo e a chefia dominante de Getúlio Vargas, cuja orientação era manifestamente anti-liberal e anti-democrática, sob a inspiração do movimento fascista italiano, reforçado pela tradição estatizante que lhe vinha da experiência gaúcha, dirigida pelas idéias autoritárias de Júlio de Castilho, conforme explanei em artigo recente (OESP – 24.11.01).

                   Extinto o Estado Novo, nova onda liberal percorreu o País até culminar na Constituição de 1946. Já então o ideário liberal se apresentava mitigado, com amplo campo de ação conferido ao Poder Central no que se refere às atividades econômicas e assistenciais, conforme era defendido sobretudo por John Maynard Keynes.

                   Foi essa orientação um dos fatores determinantes do desenvolvimento das idéias socialistas no Brasil, provocando a crise desencadeada no quatriênio presidencial de Jânio Quadros e João Goulart, tendo como desfecho a ditadura militar que iria ter tão longa duração. Bem examinada a nossa história, verifica-se, pois, que o predomínio do liberalismo entre nós tem tido caráter excepcional, sendo o seu período mais longo o que começa com a Constituição de 1988, e assim mesmo com a necessidade de várias reformas para expurgá-la de mandamentos excessivamente estatizantes e xenófobos.

                    Como penso ter demonstrado em meu livro O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias, estas passaram por profunda revisão após o soçobro do socialismo real, com a dispersão da URSS, passando a prevalecer soluções pragmáticas, com governos mistos, formados de representantes da democracia liberal e da social-democracia, esta ainda com forte carga de diretrizes marxistas.

                   No Brasil, ao lado de partidos liberais, de caráter mais personalista do que programático, prevalece um socialismo vago e indefinido, como o do Partido dos Trabalhadores, que aponta o “neo-liberalismo” como a fonte primordial de todos os nossos males.

                   É aqui que se abre, atualmente no Brasil, um leque de tendências liberais, que vão desde um liberalismo exacerbado, crente, conforme o magistério de Hayek, no benéfico jogo das operações de mercado – e seria propriamente o neo-liberalismo – até composições de cunho liberal em aliança com a mais variada gama de competências atribuídas ao Estado. Nesse contexto, o termo “social democracia” é empregado em múltiplos sentidos, variando de um Estado federado para outro, quando não se dá o mesmo no plano inferior da vida política municipal.

                   Se nos conforta a constatação de que igual fato ocorre em alguns países europeus, não se pode deixar de reconhecer que, a continuar assim, tudo terminará culminando em “arreglos” de caráter predominantemente personalista, não faltando exemplos de acordos políticos que ocultam interesses de ordem religiosa, olvidando-se o alto valor da distinção entre assunto de política e de religião.

                   Não há dúvida que estamos em uma época de marcada transição doutrinária, gerada pelo fracasso do socialismo real, o que explica a vacuidade das numerosas siglas partidárias que povoam o mundo democrático.

                   Em tão complexo cenário, não será demais chamar a atenção para a diferença que deve ser feita entre “socialismo liberal”, que é defendido, entre outros, por Norberto Bobbio, e “social-liberalismo” ou “liberalismo social”, por mim preferido na obra supra citada. Essas expressões não são equivalentes, mas correspondem ao maior ou menor valor atribuído à opção socialista, ou à opção liberal, tendo sempre como vetor o problema do intervencionismo estatal na órbita sócio-econômica.

 

5.1.2001